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ETNOGRAFIA DE RUA: ESTUDO DE ANTROPOLOGIA URBANA
Ana Luiza Carvalho da Rocha
Cornelia Eckert
Walter Benjamin (1892-1940)1 inspirou-se
na obra de Charles Baudelaire (1821-1867)2, e
de Marcel Proust (1871-1922)3 para falar
de um estado de ser e estar no mundo ao refletir sobre
seus deslocamentos nas cidades de Berlim ou Paris, a
partir de um "trabalho" da memória afetiva e
do pensar a «si-mesmo»4 na
paisagem urbana.
O personagem baudelairiano, o flâneur, caminha na
cidade: um percurso sem
compromissos, sem destino fixo. O estado de alma deste
personagem-tipo é de indiferença, mas
seus passos traçam uma trajetória, um itinerário que
concebe a cidade, o movimento urbano, a
massa efêmera, o processo de civilização. Logo, esta não
é uma caminhada inocente. A cidade é
estrutura e relações sociais, economia e mercado; é
política, estética e poesia. A cidade é
igualmente tensão, anonimato, indiferença, desprezo,
agonia, crise e violência.
Assim, a cidade do andarilho tem uma história, nem a
melhor nem a pior do mundo,
simplesmente histórias que configuram referências
práticas e simbólicas em que se reconhece ou
se constrange nas ruas que perambula, lugares que
conhece ou desconhece, espaços que gosta ou
desgosta, contextos que lhe atraem ou passam
desapercebidos. Objetos, eventos não verbais ou
verbais, ruídos ou matérias atiram-lhe a atenção
sensorial que delineia seu trajeto, seus atos. A
cidade acolhe seus passos, e ela passa a existir na
existência deste que vive, na instância de seu
itinerário, um traçado que encobre um sentido, algo que
será desvendado ao seu final. Espaços,
cheiros, barulhos, pessoas, objetos e naturezas que o
caminhante experiencia em sua itinerância,
não sem figuras pré-concebidas. Sua caminhada é de
natureza egocêntrica, funcional, mas
também poética, fabulatória e afetiva, e por que não
dizer, uma caminhada cosmológica como os
jogos de memória que os tempos reencontrados
proustinianos encenam.
Walter Benjamin, em seu texto Sur quelques thèmes
baudelairiens (Paris, 1939), lembra
que a multidão metropolitana na formação do mundo
industrial despertava medo, repugnância e
horror naqueles que a viam pela primeira vez. Da mesma
forma, o impacto das transformações
1 Referimo-nos principalmente a Das Passagen-Werk,
escrito em 1939 à Paris e publicado em 1982.
2 Referimo-nos basicamente aos trabalhos Le
spleen de Paris e Tableaux parisiens.
3 Referimo-nos sobretudo a A la recherche du
temps perdu, 1954.
4 Ricoeur, 1996.
2
urbanas, tão bem tratadas no conjunto de autores que de
modo geral são reunidos na
denominação Escola de Chicago, irá inspirar uma geração
de antropólogos que privilegia, desde
então (anos 1930), o tema do viver na cidade como
cenário primordial de análise das mudanças e
transformações.
Sob a ótica destes autores, a vida citadina é, portanto,
agitada, vertiginosa mesmo, ou
monótona e repetitiva, dependendo da adesão ou não dos
seus habitantes aos tempos e espaços
vividos, ritmados pelos movimentos incessantes das
imagens de cidade que habitam seus
pensamentos em constante mutação. Descrever a cidade,
sob um tal ponto de vista, é conhecê-la
como locus de interações sociais e trajetórias
singulares de grupos e/ou indivíduos cujas rotinas
estão referidas a uma tradição cultural que as
transcende. Conhecer uma cidade é, assim, não só
apropriar-se de parte de um conhecimento do mundo, ou
seja, os saberes e fazeres dos habitantes e
o que conheço desta experiência de pesquisa junto a
eles, quanto desvendar o conhecimento na
busca de situar meu próprio ser em relação ao ser do
Outro na cidade.
Inspiradas nas obras científicas5 e
literárias6 sobre o "passear e caminhar", a idéia de
desenvolver etnografias na rua nasceu com a proposta de
projeto de pesquisa7 intitulado «Estudo
antropológico de itinerários urbanos, memória coletiva e
formas de sociabilidade no mundo
urbano contemporâneo». Como pesquisadoras e,
desenvolvendo a atividade de formar bolsistas
de iniciação científica ao método antropológico,
propomos ao aluno tecer os seus próprios
percursos etnográficos na cidade de Porto Alegre,
contexto de uma investigação antropológica
sobre a dinâmica das interações cotidianas e
representações sociais “na” e “da” cidade. No
decorrer desta experiência etnográfica na rua, no
bairro, na cidade, a introdução de instrumentos
audiovisuais como a câmera fotográfica e/ou a câmera de
vídeo, passam a fazer parte do seu olhar
e atitude de coleta de dados de pesquisa: o exercício de
etnografia de rua, inclui então, "a câmera
na mão".8
5 Referimo-nos entre outros à Claude Lévi-Strauss,
Colette Pétonnet, Pierre Sansot.
6 Citamos igualmente aqui as obras literárias de
Henri Beyle Stendhal, Georges Perec, Italo Calvino e Ernest
Hemingway.
7 Projeto integrado Cnpq desenvolvido no Programa de
pós-graduação em Antropologia Social na UFRGS, desde
1997, e que alimenta com dados de pesquisa o projeto
Banco de Imagens e Efeitos Visuais, por nos coordenado, no
âmbito do PPGAS/UFRGS, sediado no ILEA/UFRGS).
8 Citamos como exemplos os seguintes trabalhos:
ABREU DA SILVEIRA, Flávio. “A poética do vivido: uma
etnografia do cotidiano na Cidade Baixa/POA/RS”. In:
Iluminuras: Série do Banco de Imagens e Efeitos Visuais.
Porto
Alegre: BIEV, PPGAS/UFRGS, 2000; BUAES,
Aline Greff. “Etnografia de uma catástrofe. Estudo de
antropologia urbana e visual sobre os desafios da natureza e a
sobrevivência como modo de vida entre moradores de Águas
Claras, Viamão”. In: : Iluminuras: Série do Banco de
Imagens e Efeitos Visuais. Porto
Alegre: BIEV, PPGAS/UFRGS, 2001. Pibic/CNPq- UFRGS; COCCARO,
3
A etnografia consiste em descrever práticas e saberes de
sujeitos e grupos sociais a partir
de técnicas como observação e conversações,
desenvolvidas no contexto de uma pesquisa.
Interagindo-se com o Outro, olha-se, isto é,
"ordena-se o visível, organiza-se a experiência"
conforme propõe Régis Debray9. O
etnógrafo descreve, tradicionalmente em diários, relatos ou
notas de campo, seus pensamentos ao agir no tempo e
espaço histórico do Outro-observado,
delineando as formas que revestem a vida coletiva no
meio urbano. A etnografia de rua, aqui, é
um deslocamento em sua própria cidade, o que significa
dizer, dentro de uma proposta
benjaminiana, que ela afirma uma preocupação com a
pesquisa antropológica a partir do
paradigma estético10 na interpretação das
figurações da vida social na cidade. Um investimento
que contempla uma reciprocidade cognitiva como uma das
fontes de investigação, a própria
retórica analítica do pesquisador em seu diálogo com o
seu objeto de pesquisa, a cidade e seus
habitantes. Uma vez que tal retórica é portadora de
tensões entre uma tradição de pensamento
científico e as representações coletivas próprias que a
cidade coloca em cena, o pesquisador
constrói o seu conhecimento da vida urbana na e pela
imagem que ele com-partilha, ou não, com
os indivíduos e/ou grupos sociais por ele investigados.
Luciane. “As donas da praça: estudo antropológico de
formas de sociabilidade na praça da matriz”. In: Iluminuras:
Série do Banco de Imagens e Efeitos Visuais. Porto
Alegre: BIEV, PPGAS/UFRGS, 2001. Bic Cnpq 1997/1999;
DEVOS, Rafael. “Da arte de dizer: prá vê como a vida
reserva tanta coisa prá gente”. In: Iluminuras: Série do
Banco de Imagens e Efeitos Visuais. Porto
Alegre: BIEV, PPGAS/UFRGS, 2000. Bic Cnpq 1998/2000; JACOMINI,
Jacques Xavier. “Estudo antropológico de um espaço
urbano singular, o cais do porto da cidade de Porto Alegre (ou
da cidade que tem porto até no nome).” In: Iluminuras:
Série do Banco de Imagens e Efeitos Visuais. Porto Alegre:
BIEV, PPGAS/UFRGS, 2001. Bic Cnpq 19971999; MELLO
MERCIO, Rodrigo. “Moinhos de Vento: .Tão longe tão
perto... , quando a exclusão social se traveste em
constrangimento, o vizinho não reconhecido. In: Iluminuras: Série
do Banco de Imagens e Efeitos Visuais. Porto
Alegre: BIEV, PPGAS/UFRGS, 2001. Bic UFRGS/CNPq 2000;
MYLIUS, Leandra. "Significações do viver na cidade:
Um percurso afetivo e um olhar lógico, descrição de uma
etnografia de rua na Osvaldo Aranha, Bairro Bonfim em
Porto Alegre/RS”. In: Iluminuras: Série do Banco de
Imagens e Efeitos Visuais. Porto
Alegre: BIEV, PPGAS/UFRGS, 2001. Bic Cnpq 1999/2001; PINHEIRO
MACHADO, Rosana. “Estudo antropológico das formas de
sociabilidade do centro de Porto Alegre: Vida de
Camelô”. In: Iluminuras: Série do Banco de Imagens e
Efeitos Visuais. Porto Alegre: BIEV, PPGAS/UFRGS, 2000.
Bic Fapergs 1999/2001; RAMALHO MARQUES, Olavo. “A cidade
e o tempo: as transformações no cenário urbano
em Porto Alegre”. In: Iluminuras: Série do Banco de
Imagens e Efeitos Visuais. Porto Alegre: BIEV,
PPGAS/UFRGS, 2000. Bic UFRGS/Cnpq 1999/2001; RILLO,
Sandro Belloli. “A cidade e os seus riscos: o viver de
deficientes visuais em Porto Alegre”. In: Iluminuras:
Série do Banco de Imagens e Efeitos Visuais. Porto Alegre:
BIEV, PPGAS/UFRGS, 2001. Bic Fapergs; RODOLPHO,
Patrícia. “Encontrando imagens na e da Rua da Praia:
problemas e descobertas de uma etnografia urbana”. In: Iluminuras:
Série do Banco de Imagens e Efeitos Visuais.
Porto Alegre: BIEV, PPGAS/UFRGS, 2000. Bit Cnpq
1997/1999; SANTOS, João de los. “Ruinas e tragédia: um
estudo sobre temporalidades em Porto Alegre.” In: Iluminuras:
Série do Banco de Imagens e Efeitos Visuais. Porto
Alegre: BIEV, PPGAS/UFRGS, 2001. Bic Fapergs.
9 "L'image tire son sens du regard, comme
l'écrit de la lecture, et ce sens n'est pas spéculatif mais pratique".
Segundo
Debray, 1992: 56.
10 Lembramos aqui o trabalho de Michel Maffesoli,
1985.
4
A pretensão de aprofundar uma prática de “etnografia de
rua” para o caso da pesquisa em
Porto Alegre, ou talvez fosse melhor dizer etnografia
«na» rua, não se limita apenas aos
comentários de Walter Benjamin. A proposta singular de observation
flottante, como Colette
Pétonnet11 denominou o exercício de
observação de pesquisa na rua, encontra em nós, uma
adesão de estilo pela forma como pensamos, no referido
projeto, o tema da etnografia da
duração12 a partir da descrição etnográfica
dos itinerários dos grupos urbanos na cidade.
Segundo advogamos na pesquisa sobre memória coletiva,
narrativas e formas de
sociabilidade no mundo contemporâneo, a técnica de
etnografia de rua consiste na exploração dos
espaços urbanos a serem investigados através de
caminhadas «sem destino fixo» nos seus
territórios. A intenção não se limita, portanto, apenas
a retornar o olhar do pesquisador para a sua
cidade por meios de processos de
reinvenção/reencantamento de seus espaços cotidianos, mas
capacitá-lo às exigências de rigor nas observações
etnográficas ao longo de ações que envolvem
deslocamentos constantes no cenário da vida urbana.
Postulando uma carta de Porto Alegre, bairros, ruas,
praças e esquinas
Tornar-se «um» com os ritmos urbanos é perder-se no meio
da multidão, se deixar possuir
por alguma esquina, fundir-se nos encontros fortuitos,
mas é também localizar-se nas conversas
rápidas dos habitantes locais, registrar piscadelas
descompromissadas dos passantes, rabiscar
apressadamente um desenho destas experiências no seu
bloco de notas, «bater» algumas fotos,
gravar algumas cenas «estando lá». Desenhos, croquis,
anotações, fotos, vídeos etc. No dizer
bachelardiano, para se praticar uma boa etnografia de
rua o pesquisador precisa aprender a
pertencer a este território como se ele fosse sua
morada, lugar de intimidade e acomodação
afetiva, através dos devaneios do repouso13.
Uma etnografia de rua propõe ao antropólogo, portanto, o
desafio de experienciar a
ambiência das cidades como a de uma «morada de ruas»
cujos caminhos, ruídos, cheiros e cores
a percorrer sugerem, sem cessar, direções e sentidos
desenhados pelo próprio movimento dos
11 Pétonnet, 1982.
12 Eckert e Rocha, 2000: pp. 19-40.
13 Bachelard, 1989.
5
pedestres e dos carros que nos conduzem a certos
lugares, cenários, paisagens, em detrimento de
outros.
Deslocamentos marcados por uma forma de apropriação
dinâmica da vida citadina, mas
cuja apreensão pauta-se pela freqüência sistemática do
etnógrafo a uma rua ou uma avenida, um
bairro ou uma esquina, etc.. Neste sentido a etnografia
“na” rua consiste no desenvolvimento da
observação sistemática de uma rua e/ou das ruas de um
bairro e da descrição etnográfica dos
cenários, dos personagens que conformam a rotina da rua
e bairro, dos imprevistos, das situações
de constrangimento, de tensão e conflito, de entrevistas
com habitués e moradores, buscando as
significações sobre o viver o dia-a-dia na cidade.
Fruto de uma adesão irrestrita do etnógrafo a uma
ambiência urbana, escolha movida por
amor ou ódio, à primeira vista ou não, pouco importa, a
etnografia de rua, por insistência
recorrente à poética do andarilho, ao
explorar/inventariar o mundo na instabilidade do seu
movimento, descobre um patrimônio intangível de formas
que tecem as interações sociais num
lugar. Assim, o ato simples de andar torna-se estratégia
para igualmente interagir com a
população com as quais cruzamos nas ruas. Habitués, freqüentadores,
ou simples passantes, todos
eles convidam o etnógrafo a perfilar personagens,
descrever ações e estilos de vida a partir de
suas performances cotidianas. E todos são bons momentos
para se re-traçar os cenários onde
transcorrem suas histórias de vida e, a partir deles,
delinear as ambiências das inúmeras
províncias de significados que abrigam os territórios de
uma cidade.
Através da técnica da etnografia de rua, pode-se
argumentar, o antropólogo observa a
cidade como objeto temporal, lugar de trajetos e
percursos sobrepostos, urdidos numa trama de
ações cotidianas. Percorrer as paisagens que conformam
um território, seguir os itinerários dos
habitantes, reconhecer os trajetos, interrogar-se sobre
os espaços evitados , é evocar as origens do
próprio movimento temporal desta paisagem urbana no
espaço.
A cidade torna-se, assim, aos olhos do etnógrafo, um
território fluído e fugaz em alusão "a
unidade de uma sucessão diacrônica de pontos percorridos,
e não a figura que esses pontos
formam num lugar supostamente sincrônico ou
acrônico".14
Mas para se apreender a cidade como matéria moldada
pelas trajetórias humanas, e não
apenas como mero traçado do deslocamento indiferente de
um corpo no espaço, o antropólogo
precisa recompor os traços aí deixados por homens e
mulheres. Uma etnografia de rua não se
14 De Certeau. 1984.
6
sustenta como prática antropológica de investigação sem
contemplar, desde seu interior, uma
reflexão sobre o forte componente narrativo que encerra
os deslocamentos humanos capaz de
metamorfosear «a articulação temporal dos lugares em uma
seqüência espacial de pontos".15
Para se atingir um tal componente narrativo, o etnógrafo
precisa contar com o tempo
como amigo pois ele só o atinge quando a densidade de
sobreposição cumulativa dos tempos
vividos ao longo de um trabalho de campo, aparentemente
fadado à «perda de tempo», se
precipita diante dos seus olhos. Horas de um trabalho
persistente de escritura depositadas na tela
do computador, fitas de vídeo, películas fotográficas ou
folhas de papel, sempre na tentativa do
investigador aprisionar o efêmero, são, finalmente, recompensadas
e encontram, enfim, um
sentido desvendados por um leque de conceitos.
Sem dúvida, na etnografia de rua o perfil de uma
comunidade, indivíduo e/ou grupo se
configura aos poucos pois o etnógrafo trabalha
pacientemente a partir de colagens de seus
fragmentos de interação. Isto porque uma cultura urbana
se expressa não só por convenções
gestuais, de linguagens recorrentes, especializações
profissionais de seus portadores, mas se
apresenta igualmente através de suas práticas
ordinárias, saberes e tradições com as quais o
pesquisador precisa familiarizar-se neste deslocamento
em espaços que são, ou não, o seu próprio
lugar de origem.
Na busca do encontro e diálogos menos fortuitos que
aqueles que os deslocamentos na rua
permitem ao etnógrafo, a cumplicidade dos pequenos
gestos, sorrisos ou olhares dos habitantes
da rua, moradores locais, comerciantes, freqüentadores,
mendigos, vendedores ambulantes,
menino(a)s de rua, feirantes, pode significar um convite
a aproximação mais duradoura. Nestes
rituais de sedução e jogos de conquista da atenção do
Outro, desvenda-se a lógica da criação dos
papéis através dos quais constroem-se os personagens do
antropólogo e do «nativo»16 em
interação.
Assim, ao lado das observações sistemáticas dos lugares
de sociabilidade de rua, das suas
intensidades segundo os diferentes horários, o
comportamento corporal dos indivíduos e/ou
grupos nas esquinas, suas formas de interação nos bares
e bancos de praças, suas regras de
evitações ou, ainda, as suas formas de cumprimentar ao
cruzarem os olhares nas calçadas, tudo,
15 De Certeau. 1984.
16 A noção de “nativo” é o termo técnico para definir
o OUTRO na interação de pesquisa de campo, não abrigando
mais os preconceitos da origem conceitual do mundo
colonizado, mas aportando uma consciência histórica a
nominação
7
enfim, vai criando sentido na observação atenta do
pesquisador a medida que ele se desloca. Esta
caminhada vai sendo enriquecida em sua densidade
temporal na medida em que o pesquisador
consegue precisar, nas constâncias de suas diversas idas
e vindas, os aspectos de permanência e
mudança que caracterizam e dão forma estética a este
território urbano. Aos poucos, os
movimentos das pessoas, freqüentadores ou passantes se
desenham em formas múltiplas, mas
constantes, através de micro-eventos da própria rua
observados meticulosamente pelo etnógrafo
graças à perspectiva comparativa de uma atenção
flutuante na observação sistemática da vida
social.
Apesar de uma presença freqüente aos lugares, da
insistência para ser visto e reconhecido
pelo olhar do Outro, na etnografia de rua o contato
nasce sempre de um pedido de consentimento à
interação e troca possíveis que se seguem ao
reconhecimento dos movimentos, olhares, ruídos
locais, códigos e etiquetas a serem observadas e à
aceitação da comunicação solicitada.
Entretanto, o pesquisador que vivencia a dramática da
rua está sujeito a conhecer uma
diversidade de micro-eventos de interação a qual ele
próprio interage ou reage conforme a
situação experienciada. O contato, sempre o contato,
expressa o desejo de uma multiplicidade de
trocas com os «nativos», pois é a reciprocidade, sem
dúvida, a razão de ser e existir deste analista
da diversidade e complexidade cultural. Nesta interação,
ele depende não só do domínio da
língua do Outro para compreender o que é dito, mas a
atenção aos tons e meios tons, das
insinuações e dos silêncios, dos não-ditos e refusas.
Sem dúvida, o contato nasce deste processo
de ritualização do estar na rua quotidianamente.
Sugere-se aqui que os personagens do etnógrafo e do
"nativo" nascem, ambos, numa
relação que é construída a partir de uma circunstância
artificial provocada, provocativa e, por
vezes provocatória, porque jamais natural. A construção
do contexto do encontro etnográfico
nutre-se destes códigos apreendidos pelo antropólogo na
sua observação constante de si e do
Outro, muitas vezes sob o fogo cruzado da situação de
interação tanto quanto de negociação de
realidade. Em todas elas, os atos que unem os
antropólogos aos nativos assumem formas e graus
diversos de sentido por suas especializações e
desempenhos de papéis frente a eles.
Tomando-se a pesquisa dos dramas sociais e performances
que encerra o teatro da vida
urbana mediada pelo uso de recursos audiovisuais, estes
dados levantados através do exercício de
etnografia de rua, podem ajudar aqui na reflexão das
implicações do antropólogo como intérprete
de sua teia de significados. O uso da fotografia ou do
vídeo na perspectiva do registro dramático,
8
e mesmo dramatúrgico, das interações entre indivíduos
e/ou grupos na cidade permitem ao
etnógrafo aprofundar o estudo das formas de
sociabilidade no mundo contemporâneo sob a
perspectiva da poiesis
17 que rege o «estar-junto» de um corpo coletivo, a
partir, portanto, da
expressão compartilhada de determinado tipo
comportamento estético entre os moradores e/ou
habitués de um mesmo bairro, rua ou prédio
de apartamentos.
Em especial, o recurso sistemático do vídeo nas
etnografias de rua tem nos forçado a
refletir sobre o papel estratégico da imagem-movimento
não apenas como modalidade de
registro, no tempo, do processo de inserção do
antropólogo em campo (seus dilaceramentos), mas
como parte do seu processo de interpretação dos atos de
destruição/reconstrução das formas de
vida social nas modernas cidades urbano-industriais, e
de onde emerge a evidência da escritura
etnográfica como construção da inteligência narrativa do
próprio antropólogo.
Neste sentido, no âmbito do desenvolvimento de um
projeto sobre estudos de narrativas
como fonte de pesquisa para documentários etnográficos
sobre a memória coletiva em Porto
Alegre (desde 1997) e em Paris (2001), recorre-se à
técnica de “etnografia na rua” como mais um
exercício que permite ao etnógrafo não apenas reconhecer
e interpretar o “nativo”, mas
igualmente interpretar o seu si-mesmo no contexto do
diálogo com o Outro.
Se a etnografia de rua se apoia no uso de recursos
audiovisuais, como câmeras de vídeo
ou fotografia, o olhar do antropólogo por vezes assume
um lugar de destaque. E se, em muitos
momentos se é a situação de interação que irá introduzir
o uso do equipamento audiovisual no
trabalho de campo, em outros é a câmera de vídeo ou a
máquina fotográfica que irá inserir o
antropólogo no seu lugar de pesquisa.
No primeiro caso, o equipamento confirma o gesto da
pesquisa naquilo que é captado
como vivido humano no presente, seja o seu próprio, seja
dos nativos, e mesmo de ambos. No
segundo caso, as imagem registradas de instantâneos,
quase sempre autorizadas, algumas até
mesmo roubadas, não são apenas testemunhas do passado do
«eu estive lá» do antropólogo. Elas
podem exprimir o desejo expresso do nativo de ver-se
«lá», eternizado na imagem capturada pelo
olhar do antropólogo.18
17 Ricoeur. 1994: pp. 55-76.
18 Os habitantes das grandes cidades, e mesmo de
certos lugares urbanos como feiras, praias, etc; estão
suficientemente familiarizado com o mundo tecnológico da
mídia, compreendendo-se cada vez mais como atores do
mundo social e não apenas expectadores passivos,
desenvolvendo já há algum tempo sua própria forma de veicular a
imagem de si aos olhos dos outros (pesquisadores,
jornalistas, cineastas, etc.)
9
A inclusão da máquina fotográfica ou câmera de vídeo na
etnografia de rua não significa
um ato compulsório, mas quando for o caso, a sua adoção,
exige um certo conhecimento das
regras dos códigos de ética para o seu uso, conforme
aceitação por parte dos nativos uma vez que
o registro de imagens de pessoas e situações no mundo
urbano contemporâneo responde a
direitos civis e disposições jurídicas e legais.19
Atentas a questão ética em torno da fixação do olhar
etnográfico pela imagem fotográfica
e/ou videográfica, pode-se dizer que o uso de recursos
audiovisuais durante uma etnografia de rua
é uma intervenção que ora faz parte da caminhada de
reconhecimento do antropólogo do seu
lugar de pesquisa, ora configura-se como um momento de
intervenção consentida pelos
personagens já contatados. Sob este ângulo, o potencial
interpretativo da imagem etnográfica já
se apresenta no próprio contexto de interação que cria a
sua situação de captação uma vez que o
triunfo da imagem, fotográfica ou videográfica, no
trabalho de campo revela este frágil instante
em que o pesquisador ousa inscrever uma ruptura na
interação com o Outro.20
Neste ponto, fica evidente que a proximidade
etnógrafo/nativo na rua é possível sempre
que a presença da câmera é aceita pelos sujeitos
pesquisados. Não raro, os próprios nativos são
convidados a manusear a câmera (seja fotografia, seja
vídeo) registrando em imagens o mundo
que lhe rodeia a partir de sua própria perspectiva,
dependendo é claro, de um tempo mais ou
menos longo da equipe no contexto da pesquisa de campo.
Imagem impressa num negativo, acomodada num papel ou
transferida para a memória do
computador, fotos coloridas ou preto e branco, decisão
de enquadramentos, definição da
velocidade (tempo), regulagem do diafragma, etc. a
técnica exige um aprendizado que não se
processa sem que haja por parte do etnógrafo mediações
conceituais. Em ambos os casos,
fotografia ou vídeo, o processo posterior da descrição
etnográfica, no diário de campo, associado
ao da decoupage edição das imagens tornam-se um
rico processo de avaliação reflexiva da
19 Por exemplo, a imagem de um estabelecimento
comercial tem que ser anteriormente concedida, mesmo que seja só a
fachada; a foto e a imagem de uma pessoa facilmente
identificada tem que ser autorizada pela mesma, mesmo que o
uso desta imagem seja restrita ao universo da academia
sem interesse comercial ou de mercado. Ocorre que hoje
cada vez mais os projetos “extra-muros” das
universidades são possíveis. Convite para exposições em locais públicos e
em programas de TV local podem ocorrer a posteriori e o
pesquisador tem que estar respaldado juridicamente para a
utilização das imagens produzidas no âmbito de sua
pesquisa.
20 A concordância do grupo é, sem dúvida, fundamental
tanto quanto sua compreensão da existência dos direitos de
imagem e seu aceite em assinar documento para
transmissão eventual da obra universitária em ambiente televisivo.
10
própria estética das imagens, distorcidas ou não, que
habitam dos pensamentos do antropólogo
em situação de pesquisa de campo.21
Uma síntes do mundo
Rue Faubourg du Temple e Rue de Belleville - Paris
A oportunidade de desenvolver um pós-doutoramento em
Paris, ao longo do ano 2001,
nos criou a possibilidade de ampliarmos para o contexto
parisiense os exercícios de etnografia de
rua que vínhamos desenvolvendo em vários bairros de
Porto Alegre. Em junho de 2001, dois
meses após nossa chegada a Paris e uma estada de dois
meses alojadas em apartamento de
amigos, no XIIIème
arrondissement (definição pelo qual a cidade de
Paris é dividida
administrativamente em bairros) mudamos para nossa
moradia alugada, um apartamento «deux
pièce», situado na Rue de la Fontaine au Roi, no
11° arrondissement, em edifício projetado pelo
arquiteto Louis Fargon em 1894, conforme está inscrito
no pórtico de entrada.
Lá estávamos nós, habitando um bairro parisiense
«típico» em razão de sustentar uma
tradição pluriétnica, tal qual tinha sido nossa proposta
de trabalho de pós-doutoramento
estruturada ainda em Porto Alegre. Na época, a proposta
era desvendar a cidade de Paris a partir
de uma pesquisa etnográfica sobre as formas tensionais
de vida no seu contexto urbano, num
ensaio comparativo com as situações por nós pesquisadas,
no Brasil.
Recém chegadas ao bairro, e morando próximo a Place
de la Republique, uma região
considerada por muitos como território de cruzamentos
culturais os mais diversos (o que lhe dá
uma feição de desordem que nos lembra a paisagem urbana
de determinadas áreas centrais dos
grandes centros urbanos do Brasil), os primeiros dias no
local foram de tímidos passeios nas
cercanias da nova residência, percorrendo várias vezes
as suas ruas mais próximas e confirmando
as nossas representações a respeito das marcas da
multietnicidade de sua paisagem, impressões
tecidas durante cinco anos, quando vivíamos em Paris
(Eckert de 1987/1991 e Rocha de
1990/1994), na época de realização do doutoramento.
21 Para o caso do registro em vídeo, a equipe deve
ser pequena para que seja possível, no contexto da rua, a conquista de
uma proximidade e intimismo de troca do etnógrafo com os
indivíduos e/ou grupo investigados, o que uma grande
equipe não permite.
11
A escolha de uma rua em especial no bairro nos foi
sugerida por um «nativo» francês e
parisiense. A Rue de Belleville (derivado do nome
«belavista» por situar-se na segunda maior
elevação de Paris, após Montmartre) nos foi apresentada
como sendo uma das mais interessantes
para explorarmos uma França «profunda» segundo nos
confessara este “nativo” em referência a
sua memória povoada de boas lembranças do «tempos de
boemia» dos anos 1970 no local. A
sugestão era um convite para retornarmos ao exercício
reflexivo em torno das formas diferenciais
de se «viver a cidade» que vínhamos fazendo no Brasil,
agora a partir de nossa inserção em Paris.
Foi, portanto, com tais motivações iniciais que nos aventuramos
nas nossas primeiras
longas caminhadas pelas ruas que nascendo na Place de
la Republique seguiam em continuidade
até o limite da cidade: Rue Faubourg du Temple e Rue
Belleville.
Mapa na mão, livros de história da cidade e do bairro,
folders turísticos, álbuns de
fotografias publicados, fichas de documentários
assistidos sobre o bairro22, visitas a Internet a
partir da palavra-chave "Rue de Belleville",
recorremos a estes como instrumentos importantes
para dar os contornos e contextos etnográficos iniciais
dos traçados a serem percorridos.23
Nossas caminhadas iniciavam-se regularmente na Place
de la République onde o trajeto
da Rue Belleville tem o nome de Rue Faubourg
du Temple e deste ponto, subindo em direção ao
morro de Ménilmontant, sob os traços da linha de
metrô Chatelet/Porte de Lilas, carrefour entre
os arrondissement Xème, XIème, XIXème e XXème. Nos
limites desta linha de metrô situam-se várias
estações, inclusive, a estação de Belleville, território
nos arredores da qual podemos ainda
descobrir pequenos fragmentos da ambiência antiga do
vilarejo que ali existiu, preferido por
artistas e poetas desde o séc. XVIII, encantados com o
ar «mais salubre» e as habitações mais
populares que existiam no local.
No trecho em que esta rua traz o nome de Rue Faubourg
du Temple, ela concentra
inúmeras moradias residenciais misturadas a uma paisagem
pontilhada de várias casas comerciais
22 Agradecemos a coordenadora de Assuntos Culturais
do Forum des Imagens (Paris), Mme. Elise Tessarech, pela
permissão concedida para pesquisarmos neste centro.
23 Outra forma de conhecermos o lugar foi a busca de
personagens que se dispusessem a falar sobre sua experiência de
viver no lugar. A primeira personagem nasceu nesta rua,
tem hoje 45 anos e vive na Alemanha, onde é casada e tem
três filhos. Num encontro ocasional em julho de 2001,
esta francesa se encanta com a informação que damos que
desenvolvemos pesquisa na rua de Belleville, e nos diz
“nunca imaginei que pudessem se interessar por esta rua tão
pouco turística, mas para mim é uma surpresa agradável e
tenho muitas coisas para te contar a respeito, pois nasci e
cresci naquela rua, mas foram outros tempos”. Tendo
aceito ser entrevistada sobre o assunto, esta francesa nos
recebe em sua residência na cidade de Munique,
desfilando uma quantidade enorme de fotografias antigas guardadas de
forma desordenada em caixas de camisas e sapatos.
Nossa outra informante é uma cineasta que vive em
edifício localizado no cruzamento da rua Belleville com Jean
Dumay, sindica de seu edifício.
12
que se sucedem, tais como boutiques tipicamente
francesas, açougues, um clube de lazer privado,
cafés, padarias, fruteiras, livrarias, um cinema com
filmes alternativos, lojas de aparelhos
eletrônicos, etc. Na altura do Canal San Martin,
esta mesma rua torna-se mais estreita. Na
esquina da direita, um restaurante MacDonald´s, e
na da esquerda, um café tipicamente
parisiense, parecem um pórtico de entrada para um mundo
“das mil e uma noites”. O comércio
passa a ser dominado por proprietários de origem árabe
com quinquilharias que avançam pela
calçada buscando chamar a atenção do potencial cliente,
além de algumas casas de produtos
típicos do Paquistão, das Antilhas e da África.
Nas lojas de “quinquilharias” situadas no trecho
descrito acima vendem-se mercadorias
diversas por unidades. Faz-se esta observação para
diferenciar este território daquele que
contempla o comércio da Rue de Temple, situado do
lado oposto à Place de la République, e onde
os comerciantes, predominantemente de origem asiática,
vendem à atacado. Neste local, as
vitrines podem ser esteticamente fascinantes, mas,
restrito ao atacado, a clientela é quase
invisível, deixando as ruas vazias mesmo em dias de
semana.
Ao contrário, na Rue Faubourg du Temple, torna-se
extremamente difícil manter a
caminhada em linha reta uma vez que, ao longo do
percurso, somos surpreendidos por produtos e
mercadores dispostos nas calçadas, disputando espaço com
os pedestres. Calçadas sempre
lotadas, seja em horário diurno ou noturno, deslocar-se
nesta rua é estar no meio de uma pequena
multidão que se acotovela e a palavra «pardon» é
escutada aqui e lá.
A divisa entre a Rue Faubourg du Temple e a Rue
de Belleville (trecho que constituía a
principal rua do antigo vilarejo de Belleville),
situa-se no cruzamento com as grandes avenidas
denominadas Boulevard de la Villette e Boulevard
de Belleville (esta última conhecida por
abrigar o ponto turístico do Cemitério Père-Lachaise).
Fechar os olhos nesta encruzilhada e ouvir
os sons em diversas línguas, uma polifonia de vozes, nos
desvendam atores dialogando em
francês, árabe, chinês, africano, português nos fazendo
lembrar da noção maussiana de mana na
obra sobre a dádiva de Marcel Mauss, pois certamente
este é um território onde misturam-se as
almas e as coisas.
Um olhar mais atento às fachadas das casas comerciais,
confirma o multilingüismo como
marca local. Ao lado da indicação do estabelecimento
escrito em francês, noblesse oblige,
(boulangerie, pâtisserie, coiffeur)
encontramos regularmente as informações traduzidas na escrita
chinesa, árabe e turca, etc. Esta imagem de cruzamentos
culturais é reforçada com a placa que
13
anuncia a presença da filial Quick, fast-food americano,
cercado pela ambiência fortemente
européia de cafés tipicamente franceses, de um carrossel
tradicional disputado por crianças, das
padarias, confeitarias típicas e da fachada dos grandes
prédios que se sucedem na rua.
Escolhemos um trecho de nossos diários de campo para
descrever esta ambiência, ao
mesmo tempo, confusional e fusional.
«’Na rue de Belleville, em Paris, um viajante desavisado
pode se sentir chocado com as
surpreendente mistura étnica do bairro (3 junho 2001)’.
Hoje, dia 17 de agosto,
percorremos novamente a rue de Belleville e confirmamos
que, as nossas primeiras
impressões registradas no diário de campo, logo da nossa
primeira caminhada nesta rua,
no início de junho, não eram exageradas. Hoje, para se
chegar neste «canto do mundo»,
não é preciso se deslocar de metrô, o sistema de
transporte mais popular na cidade de
Paris. Nossa residência não se situa muito longe deste
território. O dia estava bom e
convidativo para uma etnografia de rua, termo que
adotamos, em 1997, para desenvolver
exercícios de observação de itinerários urbanos na
cidade de Porto Alegre. Aliás, ao sair de
casa, na Rue de la Fontaine au Roi, pode-se dizer que
estamos no território da
multiplicidade étnica típica do bairro. Ainda na nossa
rua, na quadra oposta ao nosso
prédio, um restaurante senagelês, ao lado dele, um
restaurante cubano e, seguindo-o, na
mesma calçada, um restaurante tipicamente francês. Na
esquina de nossa quadra, um bar
com clientela que escuta em alto volume musicas cantadas
em árabe ou tocadas com
a popular guitarra argelina. Mistura de signos que
anunciam a característica do bairro:
uma torre de Babel, uma síntese do mundo. No curto
percurso que se faz na Avenue
Parmentier, antes de subirmos a Rue du Faubourg du
Temple em direção à Rue de
Belleville, podemos registrar alguns comércios dominados
por hindus (ou serão
paquistaneses?)? Estas lojas comerciais se sucedem,
mercadinhos, barbearias, etc.
Atravessamos, assim, este pequeno trecho da Avenue
Parmentier, subindo a Rue
Faubourg du Temple até o entroncamento da boulevard La
Villete com a boulevard
Belleville, que nos introduzem na Rue de Belleville.
Neste carrefour tenho a tentação
de fotografar tudo. Mas evitei neste momento em que
queria estar atenta aos
personagens da rua. Um grupo de três homens de origem
hindu ou paquistanesa
conversam na esquina, mas eles são minoria perto da quantidade
impressionante de
homens de origem argelina (ou serão magrebinos?) que se
espalham nesta esquina.
Parece uma manifestação, mas eles estão todos apenas
conversando em local público,
afirmando ser a rua o lugar masculino por excelência
desta cultura. A presença destes
personagens nos cafés de esquina é massivaa.
Cumplicidade predominantemente
masculina, sem dúvida. Tomam café, bebem cerveja e fumam
muito as tradicionais
‘narguilé’, (cachimbos de origem persa). Vários grupos
de homens se formam, os
cumprimentos com beijos na face são freqüentes,
lembrando ser este um costume não só
francês mas também presente na cultura árabe. Os mais
jovens parecem preferir um aperto
de mãos, mas tudo indica a presença de relações de
bairro ou de vizinhança, ou
simplesmente ‘habitués’. Ouve-se várias línguas
possíveis com predominância do
árabe. O movimento é incessante. Passam, caminham, tomam
diversas direções
provando que evocar os limites da rua é uma preocupação
errônea. Num esforço,
observamos quem são as mulheres nesta babilônia
improvisada e percebemos que são
as mulheres de origem africana vestidas a caráter e as
mulheres de origem asiática
que dominam as calçadas em atitude clara de compradoras
de produtos diversos na
imensidão de lojas e armazéns que dominam a Rua de
Belleville».
14
Sem dúvida, por inúmeros indícios, podemos afirmar que
estamos num território
parisiense, embora a estética urbana que predomine não é
a da suntuosidade de uma França
monárquica ou medieval, e mesmo de uma Paris
haussmaniana como aquele que o turista
insistentemente busca nos arrondissements Ième, IXème ou XVIème. Na
contramão do turismo de
uma história monumental francesa, Belleville viveu
e, ainda vive, sob outro ritmo temporal.
Segundo apontam os livros de história da «velha Paris»,
nenhum outro canto da cidade conservou
suas características campestres por mais tempo que Belleville.
Até fins do séc. XIX, a paisagem do bairro concentrava
pedreiras, vinhedos, sítios,
pomares, abatedores e algumas fábricas de manufaturas e
armazéns, separados entre si por ruelas
estreitas que se entrecruzavam, com larguras diversas,
variando de 60 cm e 2 m, onde galinhas,
patos, cães e pessoas disputavam seus espaços de vida,
cercados por terrenos vagos, jardins
abandonados, tavernas, cabarés e casas acinzentadas de
dois andares, com corredores fechados
por pequenas cercas de madeira em lugares. Um cenário
que herdara os vestígios de ambiências
de sociabilidades coletivas de outros tempos, época em
que ali realizavam-se as famosas corridas
de touros e a pitoresca festa do vinho com bebedeiras,
orgias e badernas conhecidas e
reconhecidas na memória dos parisienses como a época em
que Paris tornava-se «Roma sem o
Papa».
Segundo consta, ainda, em outros relatos que coletamos,
o bairro nasce na paisagem
urbana de Paris, acalentado por uma importante presença
de movimentos de revoltas e
conspirações populares que acompanharam a história
francesa do séc. XIX. Uma história
marcada pela agitação política que se termina com a
supressão inteira da comuna de Belleville,
em 1860, e, posteriormente, com a anexação de parte de
seu território à região parisiense,
recebendo, desde ai, em diferentes épocas, levas de imigração
de diversas procedências cujas
marcas pluriétnicas caracterizam o local. A forte
presença recorrente destas camadas de
diferentes tempos, através da referência do olhar
etnográfico aos seus fragmentos e detalhes na
paisagem urbana desta área do bairro, amalgamam-se no
tempo presente de nossa caminhada.
Desde o início do empreendimento do exercício, portanto,
fiéis à idéia de aprofundarmos
as reflexões em torno da “etnografia de rua” como
técnica destinada ao estudo dos itinerários
15
urbanos e a memória coletiva no mundo contemporâneo,
insistimos em caminhadas pela Rue de
Belleville onde o destino final, em termos
geográficos, pode ser considerado a Porte de Lilas,
uma das portas que delimita a fronteira entre a cidade
de Paris, organizada em 20 bairros, e a
periferia de Paris, conhecida pelo nome de banlieue.
Em inúmeros pontos dos trajetos adotados para se atingir
a Rue de Belleville, guiavam-nos
algumas publicações destinadas a curiosos sobre as
histórias registradas na memória dos bairros
parisienses e de suas regiões limítrofes. Com estas
intenções, nos deixamos levar por idas e
vindas em ruelas que cortam a Rue de Belleville,
e que nos conduziram a belas e boas surpresas,
como foi o caso da descoberta do Parque de Belleville,
cujo acesso por uma pequena ruela, a Rue
Piat, bordada à direita, com algumas
antigas árvores herdadas das velhas alamedas ali existentes,
e que esconde dos passantes a «bela vista» da cidade de
Paris que dali se pode ter, sem precisar
disputar com nenhum turista o melhor ponto de visão.
Mantivemos caminhadas constantes na tentativa de se
descobrir uma Belleville «no tempo
de outrora» mas cujos indícios nos ligassem a atual Belleville.
Esta foi a forma como tomávamos
contato com os pequenos pedaços de paisagem que são
quase invisíveis se comparados com a
agitação da Rue de Belleville, como foi o caso da
Rue de l’Hermitage. Nesta rua de traçado
irregular, quase um beco, e que se situa à esquerda de
quem desce a colina de Belleville, ainda se
pode observar diminutos conjuntos arquitetônicos
formados por aglomerados de antigos casarios,
com seus jardins apertados por prédios de apartamentos.
Todas estas casas baixas foram
adaptadas às atividades de seus novos donos e/ou
moradores, em geral artistas, num sinal da
permanência da aura através da qual Belleville tornou-se
conhecida na memória da cidade.
Mesmo na ausência da antiga Belleville e dos seus
acidentes geográficos (fontes, pedreiras
e poços) para nos situar na ambiência romântica do
bairro, a cada nova saída insistíamos em levar
conosco o atual mapa de Paris numa das mãos e, na outra,
livros da «velha Paris» que narravam
estórias pitorescas do lugar. Íamos, assim, caminhando a
passos lentos, surpreendendo-nos aqui e
acolá com os trajetos sinuosos das ruas que, vez por
outra, cortavam, em zigue-zague, a Rue de
Belleville, conduzindo-nos em direção ao
topo do morro de Ménilmontant.
16
Em outra ocasião, deslocando-nos à esquerda de quem sobe
a Rue de Belleville, em
direção da Place de Fêtes, atingimos, no coração
do XXème
arrondissement, o Parque des Buttes
Chaumont. O passeio havia sido programado
no sentido de aproveitarmos, como moradoras do
local, a ambiência tipicamente de lazer de fim-de-semana
dos parques parisienses num
quentíssimo dia de verão. Pais com seus filhos, casais
de namorados, grupos de adolescentes,
solitários empedernidos, cachorros e seus donos,
vendedores de sorvetes, cata-ventos e balões,
enfim, uma multidão de pessoas passeando, deitadas na
grama dos jardins ou sentadas nos bancos
acotovelavam-se para disputar um lugar ao sol. Recém
chegadas do mais rigoroso verão tropical,
ao contrário dos parisienses que acabavam de sair de um
longo inverno cinzento, frio e chuvoso,
apenas desejávamos uma sombra agradável protegidas do
sol e do calor intenso que fazia naquele
dia.
Nos deslocamentos constantes, nos divertíamos com o fato
de estarmos ora no XIXème
arrondissement, ora no XXème
arrondissement, uma alteração de posição no
mundo que dependia
de onde estávamos situadas, se de um ou de outro lado,
esquerda ou direita de quem desce a Rue
de Belleville. Uma divisão
jurídico-administrativa que não alterava a paisagem da rua, e muito
menos a feição do próprio bairro, assim como não
produzia nenhum efeito de marcas diferenciais
entre os estilos de vida dos moradores locais.
Nas caminhadas constantes, quase sempre a descoberta de
pequenas ruelas e impasses
como incidentes de percurso, marcaram nosso afastamento
da Rue de Belleville. Num destes dias,
aproveitamos a visita de uma colega, Elizabeth Lucas,
para nos colocarmos como guias turísticos
de seu deslocamento no bairro.
Optamos por subir a colina de Ménilmontant de
ônibus, o «96», até as proximidades da
Place de Saint Fargeau, ponto final de várias
outras linhas de ônibus. Uma passageira
brasileira que se encontrava no ônibus, ouvindo nossos
comentários em língua portuguesa e
sotaque brasileiro, identificou-se rapidamente como
antiga moradora do bairro e
profunda conhecedora de seus hábitos e características,
indicando-nos várias outras opções de
trajetos que desconhecíamos.
17
]O encontro foi um lembrete para nós de que ainda
tínhamos um longo caminho de
aprendizagens sobre os diversos territórios do bairro
que permaneciam ainda invisíveis aos
nossos olhos. Humildemente descemos do ônibus,
caminhamos até a Rue des Pyrenées, e de lá
iniciamos, então, a «descida» da Rue de Belleville pois
estávamos no alto da colina. Pequenas
ruelas sem saída nascem em perpendicular à Rue de
Belleville. Aproximando-nos da igreja Saint
Jean Baptiste de Belleville,
prestávamos mais atenção a seqüência de edifícios, buscando aquele
onde havíamos visto, em nossas primeiras incursões no
local, uma placa anunciando que ali havia
habitado a cantora francesa Edith Piaf, tendo, segundo biografias,
nascido nas próprias escadarias
que conduziam aos apartamentos, com a sua mãe em estado
de embriaguez.
Na ocasião, “descer” a Rue de Belleville era
percorrer o caminho inverso do que havíamos
nos habituando a fazer quando deixávamos a nossa casa em
direção ao bairro. Do topo do morro,
esforçando-nos por olhar por cima da curva que esta rua
desenha, primeiro à direita, e depois, em
forma de “S”, à esquerda, pode-se ter uma idéia dos
motivos originais que deram este nome ao
lugar. Posicionado quase no topo da colina, o
etnógrafo-turista consegue uma belle vue da cidade,
uma imagem fugaz da Tour Eiffel que é logo
recortada, aqui e ali, pelo perfil das fachadas dos
prédios de apartamentos que hoje ocupam a área. Visto de
cima, sob o topo do plateau de
Ménilmontant, de 117m, desce-se quase em
linha reta até a Place de la République, um dos
carrefours que liga em forma de estrela
inúmeras ruas e avenidas que deságuam no XIe
arrondissement.
No percurso de nossas etnografia de rua, em Bellevile,
a interação com o Outro nem
sempre é possível. Em alguns, ele é simplesmente
provocado pela situação de pesquisa
propriamente dita, em outros, este encontro procura se
revestir do tom casual de nossas ações
ordinárias no bairro como parte integrante de sua
população de habitués, como descrevem os
fragmentos do cotidiano etnográfico transcritos neste
trecho de diário de campo que segue:
Para fotografar um contexto interno na rue Belleville,
entramos num salão de beleza e tentamos
estabelecer uma conversação com a proprietária e
funcionárias, todas mulheres asiáticas. A
proprietária não permitiu que eu fotografasse o local e
para disfarçar meu constrangimento, optei
por dizer que também estava lá para um corte de cabelo,
buscando durante este tempo, explicar-me
melhor. O que foi aceito sem nenhum entusiasmo,
passando-me para uma jovem que não falava francês
e indicava todas as ações que devia seguir com gestos e
palavras soltas em chinês. O diálogo, em plena
Paris, fora interrompido pela barreira da língua.
18
Em ambos os momentos por nós assinalados acima, o
«caminhar» do etnógrafo busca as
diferenças entre o olhar da investigação e o olhar que
orienta as caminhadas nos locais turísticos
de Paris, onde este status, «turista», parece
revestir a todos de uma certa proteção à crítica ou ao
olhar reprovador. A foto autorizada ao turista, parece
ser menos comprometedora de uma
situação de inserção no local repleta de práticas
ilegais e estratégias de sobrevivência,
pressuposto que podemos exemplificar através deste
relato:
Mais uma recusa para fotografar, desta vez um vendedor
de castanhas parado na esquina da Place de la
République. Um carrinho de supermercado é a
“churrasqueira” provisória, onde um fogareiro com carvão
em brasas esquentam as castanhas depositadas em uma
chapa com furos. A reação do provável indiano
foi taxativa, não! Aqui uma pressuposição passou a
ganhar forma para nós: não é negligenciável o
número de trabalhadores estrangeiros, principalmente
vendedores ambulantes, em situação irregular. A
fotografia se tornaria uma prova desta atividade
ilegítima e por isto, em geral a foto "posada" é
recusada. A negociação mais longa é impossível devido a
barreira da língua, são trabalhadores que não
falam francês e se escondem em seus segredos de
comunidade étnica.
Uma outra parte extraída de nosso diário de campo
ilustra esta forma «casual» de
ocuparmos os lugares de vida urbana na Rue de
Belleville tal qual apreendemos como «etnografia
de rua» e como ela permite, por sua fluidez, que
possamos nos aproximar do contexto urbano de
grandes cidades como estes fossem verdadeiros «cantos do
mundo»:
Ir às compras em Belleville, na tentativa de descobrir
temperos e ingredientes para uma feijoada «à
brasileira» é descobrir lojas de especiarias antilhesas
e africanas. Lojas que procurei também
levada pela necessidade de comprar certas bugigangas de
plástico para a casa, e que no Brasil
encontramos nos supermercados. Aqui, para comprar um balde,
uma garrafa térmica, copos de vidro
ou material elétrico vai-se nas lojas «dos árabes», se
queremos comprar tecidos para cortinas e
almofadas desloco-me até as lojas dos «indianos» e
africanos, para renovar o estoque caseiro de
molhos e chás, há os supermercado dos «chineses». Posso,
se for o caso, «dar um pulo» no Monoprix,
um supermercado «bon marché», com aparência de uma loja
de departamentos, para ver as ofertas de
vinhos e queijos franceses! Todas elas são sempre boas e
nobres razões para percorrer a Rue de
Belleville em seus mais diversos contextos, como se ali
vivessemos há um bom tempo. Sem dúvida,
ao final de cada ida à campo sempre acabo me
interrogando sob a forma como a aparência caótica
da rua não só agrada aos meus olhos de etnógrafa da
desordem urbana, mas desafia o meu senso
estético ao provocar a busca de um sentido para a
diversidade tensional de cores, temperaturas, cheiros,
texturas, tamanhos, formas dos produtos comercializados
nestes lugares, tal qual as próprias pessoas
que transitam por entre as prateleiras, corredores e
calçadas de Bellevile. Um esforço reflexivo que
vem sempre acompanhado do ato recorrente de me disfarçar
no Outro, certamente na tentativa de
encontrar ali, eu própria, o meu lugar de estrangeira em
Paris, fazendo desta rua a minha casa natal.
Certamente, algumas convenções sociais na forma de
habitar tais áreas de um bairro
parisiense nos pareciam familiares, não só por já termos
vivido na cidade de Paris para
desenvolver programa de doutoramento, mas por compartilharmos
de uma cultura urbana que,
mesmo em se tratando de Brasil e de uma cidade da escala
de Porto Alegre, cultiva o gosto pelo
19
deslocamento no anonimato.
Entretanto, caminhar por Paris, nos limites traçados
pela Rue de Bellevile nos remetia
constantemente ao nosso encontro, como estrangeiras, com
a multiplicidade de culturas e etnias
denunciadas não apenas pelas diferenças entre tons de
pele, cor dos olhos, tipos de roupas, de
penteados e adereços, de expressões e gestos etc. dos
habitantes locais, homens, mulheres ou
crianças, moradores ou não. Havia igualmente a
confrontação com as inúmeras sonoridades de
voz com que o Outro se apresentava aos nossos olhos.
Seja em árabe, chinês, vietnamita, hindu,
yddish, seja nas línguas africanas que nos era
difícil de precisar a origem, todas elas, ao mesmo
tempo, neste espaço parisiense, nos incitavam
constantemente à uma reflexão sobre nossa própria
língua e cultura como estrangeiras ao lugar, apontando
para o esforço de «vigilância
epistemológica» a ser feito para ultrapassar tais
barreiras. Um pequeno trecho de nosso diário de
campo pode ilustrar este processo aqui apontado:
No dia 5 de outubro, o traçado percorrido não se
diferencia muito de caminhadas anteriores.
Caminhar pela Faubourg du Temple e pela Belleville é o
objetivo, mas neste dia carregamos um
aparelho fotográfico. A intenção maior é buscar a
riqueza da multiplicidade étnica. Não é difícil
cumprir este objetivo pois este é o contraste
predominante. Lojas comerciais de origem árabe, judia,
hindú, chinesa, vietnamita, cubana, etc, se vizinham
numa aparente harmonia contrastando com o
clima de conflito e tensão mundial entre as culturas
orientais e ocidentais que a operação vigilância-
pirata do governo francês em seu programa contra o
terrorismo, busca acordar. Mas nestas ruas,
nenhum policial se faz presente. As diversas etnias ali
presentes certamente precisam recorrer as notícias
da imprensa e televisão para lembrar que a chamada
guerra americana ou ocidental contra o terrorismo
acontece neste mesmo momento em algum lugar.
Fotografamos vários estabelecimentos e situações
na rua. Um vendedor ambulante de origem hindu vende
milhos aquecidos no carvão. Não entendo de
onde possa ser a origem deste hábito. Perguntamos para
ele se podemos fotografar e ele consente, coisa
rara pois em geral temem as fotos por serem
trabalhadores irregulares. Mas o diálogo sobre a prática da
venda do milho não prossegue, pois o vendedor não fala
francês. Um outro senhor, parecendo ser de
origem árabe, pergunta o que procuramos saber. Repito
minha pergunta e devido meu forte sotaque
ele interroga de onde venho? Respondo ser brasileira. O
senhor, que entendi ser uma espécie de
“fiscalizador” da possível aproximação de fiscais
oficiais, pergunta se sou turista. Respondo que
sim e delicadamente justifica não conhecer a origem do
hábito de vender milho queimado. O que
importa é que todos comprem. Lembramos que os franceses
costumam vender castanhas da mesma
forma, alimentação que os teria salvo da fome em
diversas situações de guerra e de miséria. Seguimos
nosso caminho sempre fotografando visando interações e a
prova de que, em Paris, a estética urbana é a
mistura de estilos.
Retomando-se os diários de campo para fins de análise,
somos atraídas pela cultura
polifônica tratada por Bakhtin24 e por seu
conceito de heteroglossia visando dar conta, aqui, da
20
capacidade de convivialidade plural em Belleville,
das questões de identidade étnica, das tensões
inerentes à multiplicidade de línguas, dialetos e
sotaques falados, dos arranjos nas formas de
sociabilidade locais e das inúmeras formas estéticas que
se tecem segundo as múltiplas e
complexas formas de interação, eventos efêmeros ou
eventos cotidianos e habituais que nos
apresentam os referentes urbanos em que o contexto
social se ancora.
A apresentação de outro extrato do diário de campo pode
aqui exemplificar, mais
precisamente, o que dissemos acima:
No dia 5 de setembro, a caminhada como sempre foi
iniciada na rue Faubourg du Temple. A
intenção era seguir um traçado mais desordenado tendo
esta rua e a de Belleville como referência,
fazendo quase um zigue-zague. Na esquina com Boulevard
de la Villette um grupo de seis pessoas
formados de homens e mulheres, estão sentados na calçada
com clara aparência de embriaguez.
Parecem ser de origem francesa, repetindo uma tendência
que observamos nas ruas parisienses:
pessoas em geral de cor branca, na faixa de 30 a 50
anos, estão sentados em calçadas ou degraus
de lojas consumindo muito álcool. Costumam ficar sempre
no mesmo lugar, pedem dinheiro e
frente a recusa dizem um simples «merci», ou mesmo um
desaforo, certamente devido o estado de
embriaguez. Neste dia não faz frio. Outros bancos são
ocupados por homens provavelmente
aposentados devido a aparência mais idosa. Portam
típicos chapéus argelinos. Conversam em dupla
ou pequenos grupos. Conversam em língua de origem,
parecem tranquilos. Aparentemente jogam
conversa fora para matar o tempo. Já a esquina com a
boulevard Belleville, chama a atenção a
quantidade de açougues judeus próximos a uma sinagoga.
Os negócios estavam todos fechados com
bilhetes escritos a mão anunciando os obséquios de um
dos patrões.
O que vivemos nos percursos cotidianos é intensamente o
movimento, a interação, as
práticas cotidianas. A efemeridade da nossa passagem,
entretanto, certamente nos impede de
desvendar uma série de códigos locais, etiquetas, segredos,
não ditos, gestos, olhares e ações que
nos passam desapercebidos, e que apenas uma continuidade
da pesquisa de campo neste espaço
pode elucidar. Mas é a própria experiência de
estranhamento/familiarização que esta sendo
dramatizada. Aparências imediatas buscam ser
ultrapassadas em parte pela imagens que retemos,
pela fotografia, pelo vídeo, pela descrição no diário.
Em especial, no que se refere o uso dos recursos
audiovisuais, nossa opção foi, neste
momento, fotografar com uma câmera digital as cenas,
personagens, situações e dramas que
compunham a paisagem urbana de Belleville, como
se reflete nesta passagem do diário de campo:
Neste dia, nosso deslocamento com a máquina parece não
chamar a atenção pois a
prática do turismo no local não é estranha aos
moradores. A obscenidade que nosso
olhar indiscreto possa provocar, parece não incomodar. A
luz para tomada fotográfica
é boa. Um típico dia de outono. O enquadramento é, ora
no sentido horizontal, ora
vertical. Pode-se observar que tendemos a enquadrar de
forma retangular certamente
devido a estreiteza da rua ea intenção de, neste
momento, buscarmos mapear os
espaços de continuidade das ruas. Fotografamos
interações e cenários que para nos,
traduzem as formas do lugar. Interagir com os habitantes
foi um pouco mais frustrante.
21
24
Bakhtin. 1992.
O uso sistemático da câmera fotográfica ou da câmera de
vídeo nas caminhadas por estas
ruas objetiva a reconstrução de uma narrativa a partir
da própria temporalidade do registro da
imagem no instante em que o acontecimento se desenrola
sob nossos olhos, o que desencadeia a
presença de todas as outras imagens que nos habitaram em
momentos e situações anteriores
quando o olho que registrava não era o da câmera, mas o
olho humano repleto de pequenas
impressões mnésicas, experiências sensoriais, evocação
de imagens de outras cenas urbanas, em
outros bairros, cidades e países.
Cenas evocadas pelo diário de campo, pela fotografia ou
vídeo, pouco importa, tratam-se
de imagens que nos habitam a medida em que nos
deslocamos pelas ruas, avenidas, lojas,
esquinas, etc. Da Paris de Hemingway à Paris de hoje, de
Paris à Porto Alegre, e vice-versa, elas
estão lá, conosco a exigir o rigor comparativo com as
imagens apreendidas que dão sentido ao
evento urbano propriamente dito que encerra a etnografia
de rua, em Belleville.
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Referencias
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Fonte:
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