terça-feira, 17 de setembro de 2013

mucambaria



Capítulo XI
Ascensão do Bacharel e do Mulato*
páginas 573 a 631

            É impossível defrontar-se alguém com o Brasil de Dom Pedro I, de Dom Pedro II, da Princesa Isabel, da campanha da Abolição, da propaganda da República por doutores de pincenez, dos namoros de varanda de primeiro andar para a esquina da rua, com a moça fazendo sinais de leque, de flor ou de lenço para o rapaz de cartola e de sobrecasaca, sem atentar nestas duas grandes forças, novas e triunfantes, as vezes reunidas numa só: o bacharel e o mulato.
            Desde os últimos tempos coloniais que o bacharel e o mulato vinham se constituindo em elementos de diferenciação, dentro de uma sociedade rural e patriarcal que procurava integrar-se pelo equilíbrio, e mais do que isso, pelo o que os sociólogos modernos chamam acomodação, entre os dois grandes antagonismos: o senhor e o escravo. A casa grande, completada pela senzala, representou entre nós, verdadeira maravilha de acomodação que o antagonismo entre o sobrado e o mucambo veio quebrar ou perturbar.
            A urbanização do império, a consequente diminuição de tanta casa-grande gorda, em sobrado magro, mais tarde até em chalé esguio; a fragmentação de tanta senzala em mucambaria, não já de negro fugido, no meio do mato grosso ou no alto do morro agreste mas de negro pardo livre, dento da cidade – fenômeno do 1830 brasileiro que se acentuou com a campanha da Abolição – tornou quase impossível o equilíbrio antigo, da época de ascendência quase absoluta dos senhores de escravos sobre todos os outros elementos da sociedade; sobre os próprios vice-reis e sobre os próprios bispos. Maximiliano ainda alcançou essa época quase feudal de organização social do Brasil; Nota 1 e o Conde de Suzannet ainda sentiu de perto, no Império, essa feudalidade, Nota 2, senão de substância, de forma.
            A valorização social começara a fazer-se em volta de outros elementos: em torno da Europa, mas uma Europa burguesa, donde nos foram chegando novos estilos de vida, contrários aos rurais e mesmo aos patriarcais: o chá, o governo de gabinete, a cerveja inglesa, a botina Clark, o biscoito de lata. Também roupa de homem menos colorida e mais cinzenta; o maior gosto pelo teatro, que foi substituindo a igreja; pela carruagem de quatro rodas que foi substituindo o cavalo ou o  palanquim; pela e pelo chapéu-de-sol que foram substituindo a espada de capitão ou de sargento-mor dos antigos senhores rurais. E todos esses novos valores foram tornando-se as insígnias de mando de uma nova aristocracia: a dos sobrados. De uma nova nobreza: a dos doutores e bacharéis talvez mais que a dos negociantes ou industriais. De uma nova casta: a de senhores de escravos e mesmo de terras, excessivamente sofisticados para tolerarem a vida rural na sua pureza rude.
            Eram tendências encarnada principalmente pelo bacharel, filho legítimo ou não do senhor de engenho ou do fazendeiro, que voltava com novas idéias da Europa - de Coimbra, de Montpellier, de Paris, da Inglaterra, da Alemanha - onde fora estudar por influência ou lembrança de algum tio-padre mais liberal ou de algum parente maçom mais cosmopolita.
            As vezes eram rapazes da burguesia mais nova das cidades que se bacharelavam na Europa. Filhos ou netos de "mascates". Valorizados pela educação europeia, voltavam socialmente iguais aos filhos das mais velhas e poderosas famílias de senhores de terras. Do mesmo modo que iguais a estes, muitas vezes seus superiores pela melhor assimilação de valores europeus e pelo encanto particular, aos olhos do outro sexo, que o hibrído, quando eugênico, parece possuir como nenhum indivíduo de raça pura, voltavam os mestiços ou os mulatos claros. Alguns deles filhos ilegítimos de grandes senhores brancos; e com a mão pequena, o pé bonito, as vezes os lábios ou o nariz, dos pais fidalgos.
            A ascenção dos bacharéis brancos se fez rapidamente no meio político, em particular, como no social, em geral. O começo do reinado da Pedro II é o que marca, entre outras alterações na fisionomia brasileira: o começo do "romantismo jurídico" no Brasil, até então governado mais pelo bom senso dos velhos que pelo senso jurídico dos moços. Com Pedro I, tipo de filho de senhor de engenho destabocado, quebrara-se já quase por completo, para o brasileiro, a tradição ou a mística da idade respeitável. Mística ou tradição já comprometida, como vimos, por alguns capitães-generais de vinte e tantos anos, para cá enviados pela Metrópole, na era colonial, quase como um acinte ou uma pirraça aos velhos poderosos da terra. Mas foi com Pedro II que a nova mística - a do bacharel moço - como que se sistematizou, destruindo quase de todo a antiga: a do capitão-mor velho.
            Os bacharéis e doutores que iam chegando de Coimbra, de Paris, da Alemanha, de Montpellier, de Edimburgo, mais tarde  os que foram saindo de Olinda, de São Paulo, da Bahia, do Rio de Janeiro, a maior parte deles formados em Direito e Medicina, alguns em Filosofia ou Matemática e todos uns sofisticados, trazendo com o verdor brilhante dos vinte anos, as últimas ideias inglesas e as ultimas modas francesas, vieram a acentuar, nos pais patriarcal, por si só uma mística, como a sua inferioridade de primeiros anos de mando, um meninote meio pedante presidindo com ceto ar de superioridade europeia, gabinetes de velhos acaboclados e até amulatados, as vezes matutos profundamente sensatos, mas sem nenhuma cultura francesa, apenas a latina, aprendida a palmatória ou vara de marmelo, devia atrair, como atraiu, nos novos bacharéis e doutores, não só a solidariedade da juventude, a que já nos referimos, mas a solidariedade da cultura  européia. Porque ninguém foi mais nem mais doutor neste país que Dom Pedro II. Nem menos indígena e mais europeu. Seu reinado foi o reinado dos Bacharéis.
            Em suas memórias recorda a página 91 Dom Romualdo de Seixas que “distinto Deputado, hoje Senador do Império” propunha que se mandasse para o Pará, com o fim de melhor ajustar ao sistema imperial aquela província indianóide do extremo Norte, “carne, farinha e Bacharéis”. E comentava Dom Romualdo: “Pareceu com efeito irrisória a medida ; mas refletindo-se um pouco  vê-se que os dois primeiros socorros eram os mais próprios para  contentar os povos oprimidos de fome e miséria e o terceiro não menos valioso pela mágica virtude que tem uma carta de Bacharel que transforma os que tem fortuna de alcança-la em homens enciclopédicos e aptos para tudo”.
De Dom Pedro II não será talvez exagero dizer-se que sua confiança estava mais nos bacharéis que administrassem juridicamente as províncias e distribuíssem corretamente a justiça, do que em socorros de carne e farinha aos “povos oprimidos”. Socorros precários e efêmeros.



 



Transcrição Literal do texto original obtido no
* Capitulo XI da obra
FREIRE, Gilberto, 1900
Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano.
309.181
F894sc
V. 2












Freire, Gilberto, 1900
Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano / Gilberto Freyre: ilustrações de Lula Cardoso Ayres, M. Bandeira, Carlos Leão e do autor. 7. ed. - Rio de Janeiro: José Olympio; 1985
309.181
F894sc
v.2

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