Capítulo XI
Ascensão
do Bacharel e do Mulato*
páginas 573 a 631
É impossível defrontar-se alguém com
o Brasil de Dom Pedro I, de Dom Pedro II, da Princesa Isabel, da campanha da
Abolição, da propaganda da República por doutores de pincenez, dos namoros de
varanda de primeiro andar para a esquina da rua, com a moça fazendo sinais de
leque, de flor ou de lenço para o rapaz de cartola e de sobrecasaca, sem
atentar nestas duas grandes forças, novas e triunfantes, as vezes reunidas numa
só: o bacharel e o mulato.
Desde os últimos tempos coloniais
que o bacharel e o mulato vinham se constituindo em elementos de diferenciação,
dentro de uma sociedade rural e patriarcal que procurava integrar-se pelo
equilíbrio, e mais do que isso, pelo o que os sociólogos modernos chamam
acomodação, entre os dois grandes antagonismos: o senhor e o escravo. A casa
grande, completada pela senzala, representou entre nós, verdadeira maravilha de
acomodação que o antagonismo entre o sobrado e o mucambo veio quebrar ou
perturbar.
A urbanização do império, a
consequente diminuição de tanta casa-grande gorda, em sobrado magro, mais tarde
até em chalé esguio; a fragmentação de tanta senzala em mucambaria, não já de
negro fugido, no meio do mato grosso ou no alto do morro agreste mas de negro
pardo livre, dento da cidade – fenômeno do 1830 brasileiro que se acentuou com
a campanha da Abolição – tornou quase impossível o equilíbrio antigo, da época
de ascendência quase absoluta dos senhores de escravos sobre todos os outros
elementos da sociedade; sobre os próprios vice-reis e sobre os próprios bispos.
Maximiliano ainda alcançou essa época quase feudal de organização social do
Brasil; Nota 1 e o Conde de Suzannet ainda
sentiu de perto, no Império, essa feudalidade, Nota 2,
senão de substância, de forma.
A valorização social começara a
fazer-se em volta de outros elementos: em torno da Europa, mas uma Europa
burguesa, donde nos foram chegando novos estilos de vida, contrários aos rurais
e mesmo aos patriarcais: o chá, o governo de gabinete, a cerveja inglesa, a
botina Clark, o biscoito de lata. Também roupa de homem menos colorida e mais
cinzenta; o maior gosto pelo teatro, que foi substituindo a igreja; pela
carruagem de quatro rodas que foi substituindo o cavalo ou o palanquim; pela e pelo chapéu-de-sol que
foram substituindo a espada de capitão ou de sargento-mor dos antigos senhores
rurais. E todos esses novos valores foram tornando-se as insígnias de mando de
uma nova aristocracia: a dos sobrados. De uma nova nobreza: a dos doutores e
bacharéis talvez mais que a dos negociantes ou industriais. De uma nova casta:
a de senhores de escravos e mesmo de terras, excessivamente sofisticados para
tolerarem a vida rural na sua pureza rude.
Eram tendências encarnada
principalmente pelo bacharel, filho legítimo ou não do senhor de engenho ou do
fazendeiro, que voltava com novas idéias da Europa - de Coimbra, de
Montpellier, de Paris, da Inglaterra, da Alemanha - onde fora estudar por
influência ou lembrança de algum tio-padre mais liberal ou de algum parente
maçom mais cosmopolita.
As vezes eram rapazes da burguesia mais
nova das cidades que se bacharelavam na Europa. Filhos ou netos de
"mascates". Valorizados pela educação europeia, voltavam socialmente
iguais aos filhos das mais velhas e poderosas famílias de senhores de terras.
Do mesmo modo que iguais a estes, muitas vezes seus superiores pela melhor
assimilação de valores europeus e pelo encanto particular, aos olhos do outro
sexo, que o hibrído, quando eugênico, parece possuir como nenhum indivíduo de
raça pura, voltavam os mestiços ou os mulatos claros. Alguns deles filhos
ilegítimos de grandes senhores brancos; e com a mão pequena, o pé bonito, as
vezes os lábios ou o nariz, dos pais fidalgos.
A ascenção dos bacharéis brancos se
fez rapidamente no meio político, em particular, como no social, em geral. O
começo do reinado da Pedro II é o que marca, entre outras alterações na
fisionomia brasileira: o começo do "romantismo jurídico" no Brasil,
até então governado mais pelo bom senso dos velhos que pelo senso jurídico dos
moços. Com Pedro I, tipo de filho de senhor de engenho destabocado, quebrara-se
já quase por completo, para o brasileiro, a tradição ou a mística da idade
respeitável. Mística ou tradição já comprometida, como vimos, por alguns
capitães-generais de vinte e tantos anos, para cá enviados pela Metrópole, na
era colonial, quase como um acinte ou uma pirraça aos velhos poderosos da
terra. Mas foi com Pedro II que a nova mística - a do bacharel moço - como que
se sistematizou, destruindo quase de todo a antiga: a do capitão-mor velho.
Os bacharéis e doutores que iam
chegando de Coimbra, de Paris, da Alemanha, de Montpellier, de Edimburgo, mais
tarde os que foram saindo de Olinda, de
São Paulo, da Bahia, do Rio de Janeiro, a maior parte deles formados em Direito
e Medicina, alguns em Filosofia ou Matemática e todos uns sofisticados, trazendo
com o verdor brilhante dos vinte anos, as últimas ideias inglesas e as ultimas
modas francesas, vieram a acentuar, nos pais patriarcal, por si só uma mística,
como a sua inferioridade de primeiros anos de mando, um meninote meio pedante
presidindo com ceto ar de superioridade europeia, gabinetes de velhos
acaboclados e até amulatados, as vezes matutos profundamente sensatos, mas sem
nenhuma cultura francesa, apenas a latina, aprendida a palmatória ou vara de
marmelo, devia atrair, como atraiu, nos novos bacharéis e doutores, não só a
solidariedade da juventude, a que já nos referimos, mas a solidariedade da
cultura européia. Porque ninguém foi
mais nem mais doutor neste país que Dom Pedro II. Nem menos indígena e mais
europeu. Seu reinado foi o reinado dos Bacharéis.
Em suas memórias recorda a página 91
Dom Romualdo de Seixas que “distinto Deputado, hoje Senador do Império”
propunha que se mandasse para o Pará, com o fim de melhor ajustar ao sistema
imperial aquela província indianóide do extremo Norte, “carne, farinha e
Bacharéis”. E comentava Dom Romualdo: “Pareceu com efeito irrisória a medida ;
mas refletindo-se um pouco vê-se que os
dois primeiros socorros eram os mais próprios para contentar os povos oprimidos de fome e
miséria e o terceiro não menos valioso pela mágica virtude que tem uma carta de
Bacharel que transforma os que tem fortuna de alcança-la em homens
enciclopédicos e aptos para tudo”.
De
Dom Pedro II não será talvez exagero dizer-se que sua confiança estava mais nos
bacharéis que administrassem juridicamente as províncias e distribuíssem
corretamente a justiça, do que em socorros de carne e farinha aos “povos
oprimidos”. Socorros precários e efêmeros.
Transcrição
Literal do texto original obtido no
* Capitulo XI da obra
FREIRE, Gilberto, 1900
Sobrados e Mucambos: decadência do
patriarcado rural e desenvolvimento do urbano.
309.181
F894sc
V. 2
Freire, Gilberto, 1900
Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e
desenvolvimento do urbano / Gilberto Freyre: ilustrações de Lula Cardoso Ayres,
M. Bandeira, Carlos Leão e do autor. 7. ed. - Rio de Janeiro: José Olympio;
1985
309.181
F894sc
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