Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu...
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino prá lá ...
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração...
A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a roseira prá lá...
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração...
A roda da saia mulata
Não quer mais rodar não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou...
A gente toma a iniciativa
Viola na rua a cantar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a viola prá lá...
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração...
O samba, a viola, a roseira
Que um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou...
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a saudade prá lá ...
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração...(4x)
http://cafehistoria.ning.com/video/roda-viva-chico-buarque-2
Roda Viva
Compositor: Chico Buarque
Intérprete: Chico Buarque e MPB-4
Ano: 1967
Disco: Chico Buarque de Hollanda Vol. 3
Tocada em qualquer roda de samba, citada em qualquer discussão de estudantes de comunicação social, presente na ponta da língua de todo comunista (beijo, @aalecram), Roda Viva é o tipo de música que não enjôa. Que ultrapassa os limites do tempo para tornar-se imortal e única, como poucas músicas conseguem. Em meio à seus 36 versos, esconde mensagens que são captadas de imediato por nossas almas, mas talvez precisem de um pouco mais de atenção para serem absorvidas por nosso intelecto. E, sem mais delongas, vamos à esta.
A composição de Chico foi feita para trilha sonora de uma peça de teatro homônima, como já dito no início do post; o que não lhes foi dito, porém, é que essa peça – com um alto teor crítico à ditadura graças ao diretor, Zé Celso – foi alvo de ataque de um grupo de extrema-direita, o CCC (Comando de Caça aos Comunistas). Para alguns, os militares foram impedir a Feira Paulista de Opinião, e, não encontrando a peça dirigida por Augusto Boal, derrubaram o Roda Viva para não perder a viagem. Em São Paulo e em Porto Alegre, posteriormente, o grupo atacou o cenário e o elenco, visando impedir que a peça continuasse a ser encenada. Pode ter dado certo – o grupo Oficina, dirigido por José Celso Martinez Correia, parou com as apresentações -, mas anos depois a música foi lançada ao público em um dos LP’s de Chico. Daí, até hoje, é impossível escutar Roda Viva sem pensar em tudo que foi vivido para que a liberdade nos fosse permitida.
Roda Viva
Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu…
É nítido o sentimento de impotência que acometia a parcela da população que sabia o tamanho do perigo que o país encontrava-se ao passar por uma Ditadura. Seja ela militar ou não, de direita ou de esquerda… Ditaduras servem apenas para mergulhar um país em ruínas. Para atrasá-lo, se não de modo econômico, mas de modo cultural e social. A maior parte da população era envolta por um véu, achando que estava tudo bem. E aqueles que sabiam que algo estava não podiam fazer muito, podendo sofrer sérias consequências. Era como se não estivessem mais ali (
como quem partiu). Como se o mundo já fosse grande demais para eles, e a esperança, pequena. Vale lembrar que o termo
estancar remete à sangue (o estancamento de uma ferida, por exemplo), o que denota todo o sofrimento de uma pátria.
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino prá lá…
Roda-viva é um movimento contínuo, que não tem fim. É a metáfora, então, da Ditadura, que – sempre atuante e sempre presente – não permite que mudanças sejam feitas. Os dois primeiros versos mostram a vontade de lutar contra tudo o que acontecia, enquanto os dois últimos apenas confirmam a impotência descrita na estrofe nº1. Apesar de querer melhorar tudo, a roda-viva carrega o destino (a mudança) para longe.
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração…
O refrão (repetidos mais algumas vezes e exposto apenas uma vez, em nossa análise) é dono de uma particular beleza, citando diversas palavras com o termo “roda”. Roda mundo, roda gigante, roda moinho e roda pião, dispostos em sequência, dão a sensação de repetição e de continuidade, tal qual a roda-viva, que não para em momento algum. Em alusão à primeira estrofe, que fala do mundo ter crescido sem que se percebesse, isso apenas reafirma que, por mais que você tente ou não mudar algo, consiga ou não… A roda viva não para. O mundo não para para esperar, ou para ajudar.
A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a roseira prá lá…
Se uma
tag pudesse ser inserida nessa análise, eu escolheria a palavra
impotência. Ela já foi e continuará sendo repetida aqui e, por mais cansativa que possa ser essa repetição, faz-se necessária. Não existe palavra que faça mais sentido, aqui. Observemos os primeiros quatro versos dessa estrofe. Nos dois primeiros, percebemos que existe a tentativa de causar mudanças e reflexões. Ir contra a corrente é ignorar a massa ignorante (no caso, ignorante por manipulação da própria Ditadura) e tentar elucidá-los. Nos próximos dois versos, porém, admitem que nem tudo foi feito. A “volta do barco” é o retorno, a volta ao ponto inicial. E é aí que enxerga-se que ainda faltava muito. Os quatro últimos versos, assim como na 2ª estrofe, fazem alusão à roda viva. Mais que o desejo de ter “voz ativa”, a esperança é cultivada, coisas boas são plantadas e aqui retratadas como uma “roseira” que, assim como todo o resto, é levado pela imponente roda viva.
A roda da saia mulata
Não quer mais rodar não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou…
É notável a tristeza que instaura-se na estrofe acima. A saia da mulata não roda mais; não há mais dança, não há mais serenata, não há mais roda de samba. Ignorando por um instante a genial utilização da palavra
roda na estrofe, é preciso admirar a genialidade e sutileza de Buarque ao retratar a quietude de um povo frente à censura que, impedido até de lutar pelo seu país, aquieta-se. Cala-se.
A gente toma a iniciativa
Viola na rua a cantar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a viola prá lá…
Faz-se, aqui, uma repetição da ideia de lutar contra a corrente. Chico não chegou a participar de muitos protestos (alega ter participado de apenas um), mas é visível a ideia que não só protestos fariam a diferença: a figura da viola representa a música, as composições que poderiam fazer alguma diferença e são levadas pela roda viva… Censuradas pela Ditadura.
O samba, a viola, a roseira
Que um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou…
Depois de tanto lutar em vão, desiste-se de fazer a diferença. Na letra, depois do movimento ser estagnado, da roda viva carregar o destino, a roseira e a vila, a esperança já não tem mais forças. Tudo isso, então, fica parecendo uma ilusão passageira… Como se a Ditadura, de fato, tivesse vencido, e qualquer resquício de mudança fosse ilusório, e tivesse sido levado por uma brisa qualquer.
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a saudade prá lá…
Talvez o mais triste dos versos, mostra que já não há mais vontade de mudar. Existe a saudade no peito, aquela vontade de que as coisas voltem a ser como antes eram… Mas já existe tanto descontentamento, tanta tristeza, que é mais uma coisa que a roda-viva ceifa do peito de todos: a saudade. Vale observar, também, que nos últimos instantes da música, a repetição do refrão acontece cada vez mais rápido, como se a música estivesse dentro dessa roda, que não para de se movimentar, e deixa tudo mais confuso. Deixa-nos cada vez mais desnorteados… Até que, de repente, chega ao fim.
Imortal, incomparável, inigualável. Roda Viva é uma canção que continua, até hoje, aberta às mais variadas interpretações. Essa é mais uma delas, e você pode concordar, discordar e, sem sombra de dúvidas, esperar um texto gigante do Tauil na seção de comentários… Se você ainda não conhecia essa canção, vá ouví-la agora mesmo, procure saber mais sobre Chico Buarque (modéstia à parte, o
Artilharia Cultural é um bom lugar pra começar) e leia um pouco sobre nossa Ditadura.
E cuidado, sempre, com a roda-viva. Não é porque estamos fora desse período que ela não existe em outras formas, atuando de outras maneiras e vestida com outras roupas.
http://www.artilhariacultural.com/2010/06/24/por-tras-da-musica-roda-viva/